Última revisão: julho de 2024.
Quando me mudei para os EUA para fazer doutorado em 2008, o maior obstáculo que enfrentei foi a falta de informação a esse respeito. Não são muitos os brasileiros que vêm aos EUA para se doutorar em humanas, e por isso o conhecimento sobre oportunidades e o processo de inscrição não circula tão amplamente. Eu sabia que brasileiros podiam vir aos EUA para um doutorado parcial (o famoso sanduíche) ou mesmo integral, com bolsas da CAPES ou do CNPq; também sabia que é possível pagar do bolso para cursar certos programas de mestrado. Mas não sabia se instituições americanas ofereciam doutorados integrais com bolsa para alunos estrangeiros. Hoje sei que oferecem, e resolvi redigir um guia para ajudar candidatos que estejam começando a investigar o assunto. Para começar vão algumas informações básicas e um alerta.
O básico
Primeiro as boas notícias: muitas universidades americanas têm processos seletivos anuais para o doutorado, e candidatos estrangeiros podem se inscrever. O prazo de inscrição é normalmente em dezembro ou janeiro. Não é preciso comparecer em pessoa; o processo é todo a distância. A outra boa notícia é que, com algumas exceções, as universidades americanas não requerem o mestrado para o ingresso no doutorado. É isso mesmo: quem tem só a graduação pode se candidatar normalmente e entrar direto no doutorado.
Por fim, diversamente do que ocorre em outras partes do mundo como na Europa, o processo de admissão nos EUA também vale como processo para obtenção de recursos. Os melhores programas de doutorado oferecem o que em inglês se chama defunding package (ou pacote de custeio) com três componentes: um estipêndio mensal, um plano de saúde e um tuition waiver (a isenção do pagamento de mensalidades). Isso vale tanto para universidades particulares de prestígio, como Harvard, Princeton, Cornell, ou Northwestern, como para universidades públicas com fortes programas de pós-graduação, como na Califórnia, no Illinois, no Michigan, em Massachusetts ou no Wisconsin. Em tais instituições, passar no processo seletivo automaticamente traz os recursos de que o doutorando necessita para sobreviver nos EUA.
O motivo para isso é que o doutorado em humanas nos EUA é estruturado de maneira diferente dos programas da maioria dos outros países. Em países como o Brasil, o Reino Unido, a França, a Alemanha, a Índia ou a Austrália, o doutorado é um programa sobretudo de pesquisa. Deve-se cumprir um pequeno número de créditos fazendo cursos, mas o componente principal é pesquisar e escrever a tese. Nos Estados Unidos é diferente. Os programas são concebidos para formar não apenas pesquisadores mas também professores do ensino superior, e por isso incorporam a atuação intensiva na área de ensino. Os doutorandos devem, como requisito para se graduarem, atuar como monitores (teaching assistants) e dar cursos de graduação por vários anos. E recebem por isso. Daí o estipêndio que acompanha o funding package: o que o doutorando recebe nem sempre é uma bolsa de pesquisa; com maior frequência, é um salário por serviços prestados como monitor ou professor da graduação. Os programas mais ricos também oferecem bolsas (de modo que o doutorando dá aula em alguns anos mas dedica-se exclusivamente à pesquisa em outros), mas o modelo mais frequente é dar aula para receber.
Dar tantas aulas tem seu lado bom e seu lado ruim. O lado bom é que, para quem deseja ser professor mas não tem vivência em sala de aula, o doutorado proporciona uma experiência diversificada e imersiva. O lado ruim (e eis aqui o alerta) tem dois aspectos. Primeiramente, departamentos com menos recursos financeiros tendem a impor aos doutorandos uma carga de ensino incompatível com a necessidade de fazer pesquisa. (Em caso de admissão, vale a pena entrar em contato com doutorandos atuais e perguntar como é a carga e quanto tempo eles têm para mexer com a tese.) Segundo, a diferença estrutural significa que os programas de doutorado nos EUA são muito mais longos do que em outras partes do mundo.
Um problema: a duração dos programas
No Brasil e nos países europeus, o doutorado em humanas dura de três a cinco anos; nos EUA, a média nacional para um doutorado em História ou Literatura está entre sete e oito anos (dados aqui); campos como a Educação ou ciências sociais como a Antropologia têm médias ainda mais altas. Esses números têm caído por motivos complexos relacionados à crise universitária americana, mas continuam sendo uma longa parte da vida. Eu levei sete anos para concluir o meu doutorado; algumas pessoas que conheço levaram dez, doze e até mesmo treze. Hoje os programas raramente permitem que se demore tanto; mas seis ou sete anos ainda são a expectativa mais comum.
Isso é um fato pouco conhecido mesmo entre candidatos americanos. Em geral, departamentos de humanas anunciam em seus websites que seu programa de doutorado é de "cinco anos" (vejam aqui os exemplos de Princeton e Fordham). A impressão que isso cria é que a pessoa se formará dentro desse período. Mas não é verdade. Esse anúncio significa duas coisas: primeiro, que os requisitos formais para a conclusão do programa (como cursos, exames qualificativos e outras atividades obrigatórias) são distribuídos ao longo de cinco anos; e, segundo, que a garantia de bolsa ou estipêndio se estende por esses cinco anos. O programa e o custeio duram cinco anos, mas a escrita da tese pode durar mais. Na prática, a absoluta maioria dos doutorandos chega ao final do quinto ano sem ter concluído ou defendido a tese (que inglês se chama dissertation). Concluem-se os cursos, fazem-se as provas e tudo o mais, mas a tese quase sempre exige alguns anos a mais.
Esses anos adicionais são uma fase delicada do doutorado nos EUA, especialmente para o doutorando estrangeiro. O funding package oficialmente acaba depois do quinto ano, e nem sempre há oportunidades para o doutorando continuar dando aula ou recebendo. Quem é dos EUA pode exercer atividade remunerada em outros ramos e terminar o doutorado; mas o visto do doutorando estrangeiro (F1) não permite o trabalho fora da universidade. Sabendo disso, departamentos com bom senso de responsabilidade priorizam seus estudantes estrangeiros na hora de distribuir oportunidades, ajudando-os a permanecer à tona por mais um ano ou (raramente) dois. Em caso de admissão no programa, vale a pena escrever para os atuais doutorandos e perguntar o que acontece para além dos cinco anos de custeio.
Os programas e seus requisitos
Essa longa duração se deve não apenas ao fato de que nos EUA os doutorandos têm de atuar como professores. Os programas também requerem mais cursos do que é o costume em outros países. O programa que eu cursei (no departamento de literatura inglesa da Universidade Johns Hopkins) exigia um total de dez cursos. No primeiro ano fazíamos três cursos por semestre, sem precisar dar aulas. (Esse ano era custeado por uma bolsa de pesquisa, ou fellowship.) No segundo ano a carga caía para dois cursos por semestre, já que tínhamos de atuar como monitores auxiliando professores e liderando grupos de discussão. Só no terceiro ano começávamos a dar os nossos próprios cursos. Por essa altura os créditos em aula já tinham sido cumpridos (embora quem quisesse ainda pudesse cursar disciplinas voluntariamente), mas havia dois exames de qualificação que exigiam pelo menos um semestre de preparação. Eis então outro motivo para a longa duração do doutorado em humanas: a pesquisa para a tese só começa para valer em fins do terceiro ano de doutorado, quando alunos na Europa já estão na fase final do programa.
Mas isso não é necessariamente ruim. Essa carga maior de cursos, a meu ver, é um dos principais atrativos dos programas americanos. Os cursos seguem o formato que nos EUA se chama seminar: são mesas redondas com poucos alunos (de quatro a doze por sala) em que o professor passa leituras e atua como moderador. Eles proporcionam um ambiente em que o doutorando exerce intensivamente várias práticas fundamentais da carreira acadêmica: ler fontes primárias e secundárias de variada complexidade em diversos subcampos da área de especialização; discutir, espontaneamente, essas fontes com outras pessoas que também as leram; escrever textos acadêmicos dentro do padrão vigente no mundo acadêmico anglo-americano; e apresentar esses textos a um público de pares, em regime de congresso, para então responder a perguntas. Para quem nunca fez isso antes, os cursos ajudam o doutorando a desenvolver a habilidade de pensar ao vivo, de fazer e responder a perguntas dentro dos moldes acadêmicos apropriados, de defender as próprias ideias mas também abrir-se a críticas quando parecerem justas, e de produzir e compartilhar textos que servem como treinamento para a escrita de artigos e da tese. O objetivo desses cursos, menos que a mera transmissão de conhecimento, é criar para os alunos um microcosmo do mundo acadêmico em que eles pretendem ingressar, um espaço em que possam praticar o tipo de conversa que a experiência mais passiva da graduação raramente possibilita.
Outros detalhes importantes: Em muitos programas nos EUA, uma vez concluídos os cursos e os exames de qualificação, o doutorando recebe o grau de mestre. Trocado em miúdos, tais programas de doutorado vêm com um mestrado embutido. (Por isso é possível candidatar-se direto da graduação.) Os melhores programas oferecem apoio financeiro para a participação em congressos, e também convidam estudiosos de outras instituições para séries de conferências — permitindo que os doutorandos compartilhem seu trabalho e conheçam estudiosos da mesma área para além dos limites da universidade. Existem oportunidades para fazer cursos em outros departamentos e colaborar com outras unidades no campus, como programas em humanidades digitais, centros para o estudo de raça e gênero, arquivos com materiais raros ou iniciativas envolvendo a participação da comunidade local.
Em suma: os programas nos EUA são mais longos, incluem mais cursos e componentes e exigem atividade como professor; mas também oferecem um treinamento profissional mais diversificado para quem pretende seguir a carreira acadêmica; acima de tudo, vêm com bolsa ou estipêndio garantidos por pelo menos cinco anos.
Como ingressar?
Voltemos então à pergunta mais importante: como é que se ingressa?
Esse tipo de informação estará disponível no site dos departamentos. Os sites de universidades americanas são grandes e confusos, por isso vá direto ao site do departamento específico em que pretenda ingressar. Digite no Google "graduate" + "admissions" e o nome da universidade e departamente (por exemplo, "Yale" + "Philosophy"). O resultado será uma página como esta, contendo informações sobre o prazo de inscrição e os documentos necessários.
Embora haja variação, os documentos básicos são os mesmos para a maioria dos programas. Para o aluno americano, eles incluem:
• O Statement of Purpose: um documento de duas páginas descrevendo interesses acadêmicos, experiências relevantes e expectativas quanto ao programa. Este é de longe o documento mais importante, e vale a pena revisar muitas vezes antes de enviar. Eu escrevi um guia, em inglês, sobre como escrever o Statement of Purpose. Bons programas oferecem diretrizes sobre o que o documento deve incluir; vai um exemplo.
• Um Curriculum Vitae.
• Uma amostra de escrita: um texto de 12 a 30 páginas (varia por departamento) que ilustre seu potencial como pesquisador na sua área. Na maioria dos casos terá de ser em inglês. Este é segundo documento mais importante do seu dossiê, e precisa ser do mais alto nível de que você for capaz neste momento em sua carreira.
• Três cartas de recomendação escritas por professores que conheçam o seu trabalho acadêmico.
• Uma cópia dos históricos escolares do ensino superior.
• Um teste de conteúdo chamado GRE, feito à parte e antes do prazo de inscrição. (Muitos programas têm deixado de pedir esse teste, o que é uma coisa boa.)
O aluno estrangeiro terá certos requisitos adicionais:
• O teste de inglês do TOEFL.
• Uma tradução juramentada do histórico escolar.
Esses são os requisitos mais comuns. Mas cada escola pode ter os seus requisitos específicos, e o caminho é pesquisar. Aqui vão algumas dicas:
• Algumas áreas de humanas, como História, requerem que o inscrito indique o nome de potenciais orientadores, e é comum escrever para os professores de antemão indicando o interesse em trabalhar com eles. Esses professores serão consultados na hora das decisões sobre admissão. Em outras áreas, como a literatura inglesa, isso não é necessário e tampouco é preciso contatar professores de antemão. Decisões de admissão são tomadas por um comitê, e os alunos só escolhem orientador depois de dois anos no programa. Em caso de dúvide, contate o departamento e pergunte qual a prática.
• Nos EUA não existe um programa chamado “Letras”. Departamentos de literatura inglesa são sempre “English Departments”, de literatura brasileira são com frequência “Spanish and Portuguese Departments”, e há uma variedade de outros termos.
• Comece cedo. Embora o prazo de inscrição seja normalmente em dezembro, esses documentos são difíceis de preparar, e os testes do GRE e do TOEFL podem requerer agendamento com grande antecipação. Para se inscrever em dezembro, comece a se preparar no meio do ano. A concorrência é alta e os melhores candidatos dedicam muito tempo a preparar a amostra de escrita e o Statement of Purpose. Um programa que admita 10 doutorandos por ano pode receber de 200 a 400 inscrições. Materiais mal escritos ou conceitualmente pobres são eliminados logo na primeira triagem.
• Infelizmente nem todas as universidades americanas oferecem bolsa ou estipêndio para alunos estrangeiros. A Universidade da Virgínia, por exemplo, é uma excelente instituição, mas como universidade pública muitos de seus departamentos só custeam alunos americanos. Assim, pesquise: inscreva-se apenas nos programas que oferecerem funding packages para alunos estrangeiros. Em caso de dúvide, contate o departamento. A melhor pessoa para contatar é o Director of Graduate Studies.
• Não confunda o funding package com financial aid. A assim-chamada financial aid não é bolsa, mas crédito estudantil. É um empréstimo que o doutorando pode fazer para pagar depois, com juros. Não vale a pena na área de humanas. Evite a todo custo.
• Tenha em mente que seus professores também precisarão de um prazo elástico para escrever as suas cartas de recomendação. Evite pedir a carta em cima da hora. Dois meses de antecipação são um prazo razoável. Lembre-se, também, de que a carta terá de ser em inglês. Caso seu professor não domine o idioma, será necessário traduzi-la. Vai um modelo.
• Não se deixe intimidar pelo prestígio da instituição. Se o melhor programa para você estiver em Harvard ou Yale, inscreva-se. Mas vale a pena inscrever-se em vários programas, de 10 a 15. (Mais do que isso custa caro; existe uma taxa de inscrição, e os materiais não saem de graça.) Maximize suas chances, mas não deixe de tentar os melhores programas.
• Lembre-se de que o melhor programa de doutorado não está necessariamente na universidade mais famosa. Os rankings universitários mais divulgados medem a reputação dos cursos de graduação; existem rankings específicos para os programas de pós (veja mais abaixo). Pode ser que o melhor programa de doutorado na sua área esteja em Harvard ou Columbia ou Princeton; mas pode ser que esteja numa universidade menos conhecida. (Por exemplo, a Universidade de Iowa tem o programa mais prestigioso dos EUA em Creative Writing.) Também é importante pesquisar o corpo docente: o ideal é entrar num programa que tenha no mínimo dois professores na sua área de especialização, de preferência mais. Como em outras áreas, aqui a regra é simples: pesquise bastante.
• Para saber onde estão os melhores programas na sua área, um bom recurso é o U.S. News and World Report. Eis os rankings para os programas de Literatura Inglesa, Ciência Política e História.
Acima de tudo, boa sorte!
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